No campo das artes, é impossível falar da Cidade de Goiás sem mencionar os nomes de Cora Coralina, a poeta, e de Goiandira do Couto, a artista plástica. Cora e Goiandira talvez sejam a maior poesia que a antiga capital gerou e, ao contrário dos políticos, vão sobreviver. Eternamente — quem sabe, como Flaubert, Balzac e o café, como diria uma Madame Staël moderna. A política passa; a arte, fica (alguém lembra o nome de algum “prefeito” de Paris da época de Flaubert?). O repórter Antônio Lisboa esteve em Goiás, em janeiro de 1999, com o objetivo de traçar um perfil de um gênio que, por ser simples até em sua sofisticação, às vezes não é visto como gênio. O resultado da conversa é um perfil delicado e complexo de Goiandira, que contou ao repórter, sem mistérios, seu método de trabalho, seus segredos. Hoje, aos 85 anos, Goiandira continua trabalhando. O trabalho, para ela, é mais do que trabalho — é prazer e lazer. É um exercício diário contra a alienação. A arte é sua vida, seu oxigênio. O perfil foi publicado na edição do Jornal Opção de 10 a 16 de janeiro de 1999.
GOIANDIRA DO COUTO
Uma força da natureza
Com invejável lucidez, nos seus 83 anos, a artista plástica abre o seu baú de memórias e fala de sua arte e da história
ANTÔNIO LISBOA MORAIS (TEXTOS)
Quem passa pelo número 19 da Rua José Bonifácio, na cidade de Goiás, imagina tratar-se apenas de mais uma das velhas casas que compõem o bicentenário conjunto arquitetônico da antiga Vila Boa. Lá dentro, porém, o imenso corredor, que permite a quem chega à porta de entrada uma longínqua visão da cozinha, é um silencioso apelo ao visitante, que não resiste e acaba entrando. Afinal, o velho casarão é parada obrigatória de quem vai à cidade. De autoridades a simples turistas. É onde mora a artista plástica Goiandira do Couto, 83 anos. E é exatamente ela quem, sorridente, vem ao encontro da equipe do Jornal Opção, na terça, 5, para cerca de três horas de conversa.
Na verdade, o casarão, cuja edificação já ultrapassa a marca dos 100 anos, não abriga apenas uma das mais notáveis representantes da arte brasileira atual. Ele acolhe também incontáveis formas de registro da cidade e da intervenção de Goiandira do Couto, do magistério às artes. Entre suas paredes, cultura e história se interpenetram, em fronteiras tão tênues como a dos matizes dos quadros produzidos pela artista com suas areias coloridas. Goiandira do Couto vai abrindo portas e apresentando a casa. Um a um dos 13 cômodos que margeiam o longo corredor. No primeiro salão, estão alguns dos seus quadros mais valiosos. Sobretudo pela cota de sentimentos que eles exprimem para a pintora. É o caso de um cachorro retratado por Mariquinhas do Couto em 15 de julho de 1926. Essa era a assinatura artística de Maria do Couto, a mãe de Goiandira.
Arte e História — Sorridente e brincalhona, Goiandira do Couto parece combinar a presteza de guia turística com o deslumbramento de peralta menina interiorana. Com uma incontida ponta de vaidade no canto dos lábios, ela exibe, no centro do primeiro salão, uma vitrine de troféus, medalhas (leia texto na página 30) e outras honrarias a ela concedidas. Em seguida, aponta para a parede e, com certo brilho nos olhos, apresenta um arranjo de flores em óleo sobre vidro de fundo escuro. Trata-se de seu primeiro quadro, produzido em 5 de dezembro de 1933. Aliás, o tempo é um elemento privilegiado nos domínios da artista plástica. De pintura a foto, tudo tem uma referência de época. Casarios, igrejas e diferentes tomadas da antiga capital de Goiás são a temática predominante. São exemplos os quadros Casinha, de 1947, e Rio Araguaia, de 1961.
Uma aura de misticismo envolve a entrada em cena da areia sobre duratex, técnica desenvolvida pela artista e que lhe tem rendido notoriedade em vários pontos do mundo. Manhã de 18 de dezembro de 1967. como era final de semana, Goiandira do Couto decidiu ficar na cama um pouco mais, já que não daria aulas naquele dia. “Eu estava deitada. De repente, do meu lado direito, uma voz me falou: ‘Faz uma casa com areia’.” A princípio, a artista ficou assustada. Em seguida, lembrando do fato de ser espírita e ter fundado em Goiás a representação da Igreja Messiânica, ela rezou um Pai-Nosso, pensou na memória dos seus pais e passou a refletir.
Se já dispunha de uma coleção de vidrinhos com areias coloridas, por que não usá-las como tinta a óleo? Em seguida espalhando cola branca sobre duratex, foi distribuindo pontos coloridos sobre a tábua com pincéis. Inspirou-se numa das igrejas de Goiás, reproduzida em óleo. Desde então, a arte de Goiandira do Couto cria asas e corre mundo. E nessa decolagem sem volta, seus quadros foram parar nos Estados Unidos, Alemanha, França, Suíça, Espanha, África do Sul, Dinamarca, Áustria, Portugal, Austrália, Canadá, Iugoslávia, Chile, Japão, Itália e México, entre vários outros países, num desfile de nomes quase infinito que ela faz.
Tons do Talento — Melhor que falar da técnica é mostrá-la, proclama Goiandira do Couto. É isso que ela propõe. Convida repórter e fotógrafo para acompanhá-la ao seu ateliê. O salão tem, entre outros móveis, uma imensa mesa sobre a qual estão, lado a lado, como monumental colméia, 551 pires. Cada um possui um matiz único de areia. Essa preciosidade é toda garimpada pela pintora nos veios das pedras da Serra Dourada, que circunda a antiga capital goiana, como se, num abraço de deuses, quisesse protegê-la. Primeiro, a artista produz uma base de tinta branca sobre o duratex. Em seguida, traça o objeto que deseja retratar, quase sempre um “pedaço” da cidade. O passo seguinte é cobrir os traços com cola branca — parte desenvolvida por ela própria. Com os dedos, Goiandira do Couto vai distribuindo areais na tábua, nos tons que deseja. O resultado é fantástico. Uma composição singular cujo realismo impressiona. “Pinto mais Goiás, pois é uma cidade bonita, romântica, que em cada cantinho tem uma coisa interessante para mostrar.”
Com a técnica patenteada na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, Goiandira do Couto é, com certeza, uma privilegiada. Já ultrapassou a barreira da necessidade de exibir sua arte, coisa comum à maioria dos mortais que enveredam por esse íngreme caminho. “Vender, eu não preciso, pois vivo de minha aposentadoria — como professora e como ex-funcionária do fisco estadual. E exposição é para vender. Só faço quadros sob encomenda e estou com umas 400 — suas telas custam, em média, 3 mil reais. Isso me basta para viver.”
Com uma memória que surpreende para quem beira os 84 anos, ela revela uma de sua paixões: viajar. Com certo desencanto, conta que já não põe, com a mesma freqüência de antes, o pé no caminho por causa da labirintite que lhe tolhe a segurança. Apesar disso, não deixa espaço para a tristeza sequer nas frestas do assoalho do velho casarão. Erguendo a cabeça, dá firmeza à voz e diz conhecer todo o Brasil e cita um incontável número de países onde já esteve.
Coração de Estudante — Filha do juiz de Direito (de Catalão) Luiz Ramos de Oliveira Couto (nascido em 6 de abril de 1884) e de Maria do Couto, Goiandira Ayres do Couto chegou a Vila Boa com sete anos de idade. Dormir cedo, brincar com outras meninas, de quitutes, roda e bonecas, fazer comidinhas. Essa são algumas das imagens de infância que a artista desenha na memória, num relato que lhe dá prazer. Porém, as mais caras lembranças, ela observa, são do tempo de estudante. Para seu alívio, Goiandira do Couto não viveu os duros tempos denunciados por Cora Coralina, quando a mulher não podia assinar seus textos a serem publicados “para não ser malvista”.
A propósito, Goiandira do Couto possuía bom relacionamento com a poetisa-doceira. Já famoso, com livros publicados em Portugal, o pai de Goiandira (Luís Ramos do Couto) é quem corrigia os primeiros escritos da menina-moça Cora Coralina.
Sem querer citar nomes, “para não melindrar ninguém”, Goiandira do Couto faz um positivo balanço das artes plásticas no Brasil contemporâneo e especialmente no Estado. Ela vê um incrível avanço tanto na diversidade de técnicas e estilos como na proliferação de nomes. Em relação a si mesma, a pintora se considera uma espécie de self made woman. Ou seja, confere a ela própria o mérito de ter aberto o seu caminho. Logicamente, tomando como substanciosa referência as aulas da mãe Maria do Couto.
Serena e simpática, Goiandira do Couto acredita ter recebido o devido reconhecimento ao seu trabalho artístico. O fato de ter raízes fincadas profundamente na cidade de Goiás não a incomoda. Ao contrário, lhe confere um certo orgulho. Isso se torna notório na paixão dosada com romantismo com que fala da terra de seu pai — a mãe nasceu em Dianópolis (TO).
Além da mobília — ela tem uma cama em cada cômodo — e de um acervo histórico-cultural inestimável, com quem mais Goiandira do Couto divide o espaço de sua casa? “Com a felicidade”, ela responde. “Sou feliz e, se pudesse voltar a este mundo, eu seria a mesma pessoa”, reflete a artista. O mundo central e periférico, unido pela teia da globalização, descobriu e aprendeu a admirar a arte de Goiandira do Couto. Entretanto, Goiás ainda não explorou com a mesma fúria com que o fizeram com o minério do Rio Vermelho, o veio histórico-cultural dessa figura. Goiandira do Couto é a história de Vila Boa viva e pulsante.
Moldagem de talentos
Mesmo aposentada como professora, Goiandira do Couto ainda hoje molda talentos. Um dos mais recentes chama-se Marcilon Francisco de Assis, 49 anos. Atualmente vigia do Colégio Estadual Olavo Campos, de Heitoraí, ele descobriu que leva jeito para a arte quando, tempos atrás, decidiu fabricar pequenos bichos com cera de abelha. Gostou do que fez. Viu a casca do cajazinho e arriscou talhá-la a canivete, dando-lhe também formas de animais. Mostrou tudo a Goiandira do Couto, que resolveu investir no talento do amigo e compadre. Ela passou-lhe, em várias aulas, noções de proporção e de anatomia.
Daí, Marcilon de Assis não parou mais. Já não sabe o número de bichinhos que fez. Só tem certeza de que são centenas. Produz pássaros, ratos, jacarés, sapos e inúmeras outras espécies. Apesar de não viver disso, as peças têm-lhe rendido algum dinheiro. São vendidas a preços que variam de 2 reais a 5 reais. Mesmo não tendo feito sequer uma exposição — o artista conquistou o primeiro lugar no Gremi, de Inhumas, em 1985 —, Marcilon de Assis tem trabalhos em vários países da Europa. Eles são propagados a partir das sacolas de turistas, que não param de chegar à casa de Goiandira do Couto. Seu sonho é expor em Goiânia. Para isso, está à espera de um mecenas.
Além de esculpir minúsculas esculturas, Marcilon de Assis é também violeiro. Arranca sons apaixonados de uma viola sertaneja de dez cordas. Compõe suas próprias melodias. Diz ter mais de mil delas. Um dos entraves ao seu sucesso, ele reconhece, é a mania de mudar-se com freqüência de uma cidade para outra. Casado com Marina Rodrigues de Assis, 27, tem os filhos Zezzi, Zezimar e Marcilon Filho. Para provar que seu verso é “bem rimado”, Marcilon de Assis canta uma parte de Padrinho de Casamento: “A menina que eu amo tanto/ Não sai do meu pensamento/ Ontem ela veio me procurar/ Para ser seu padrinho de casamento/ Não sei o que posso fazer/ Quase morri naquele momento”. Mesmo levando em conta a paixão pela música, há quem aposte que é nas artes plásticas que Marcilon de Assis poderá se dar melhor. Ele não duvida. (Antônio Lisboa Morais)
Paixão nas artes e nas letras
Depois de mais de hora de entrevista, em volta da mesa da cozinha e temperada com três sabores — tangerina, jabuticaba e jenipapo — de legítimos licores, produzidos pela própria Goiandira do Couto, a artista plástica, que orgulha-se de ter sido uma grande doceira, pede licença e vai até o fogão. Faz um café, que serve com bolachas e reinicia a conversa.
Em meio a aromas e vapores, Goiandira do Couto revela que está com um livro de poesia praticamente concluído. De início, sugerindo dúvidas sobre a oportunidade de publicá-lo e com certo mistério, ela conta que a obra é inspirada em sua Vila Boa. Porém, o conjunto de poemas é um baú de generalidades. Sobretudo de sentimentos diversos.
O poema a seguir, teve inspiração num acampamento à beira do Rio Araguaia: “Quando bem cedinho despertei/ E abri os olhos para a vida/ Você despertou comigo/ no pensamento./ Fui à missa, rezei/ Pedi a Jesus com tanta devoção/ Que afastasse a pessoa de quem mais gosto/ Do meu coração/ Minha prece/ Que do fundo d’alma vem/ Seja atingida./ Amém”.
Além dos quadros em diferentes Estados brasileiros e em inumeráveis países, Goiandira do Couto tem estado na boca e nos olhos de muitos. Num quarto, do lado esquerdo do corredor, ela retira algumas pastas apinhadas de recortes de jornais goianos e de outros Estados nos quais o alvo da notícia é ela própria. Noutra pasta, estão recortes de revistas e jornais estrangeiros, a maioria alemães (a pintora diz dominar “apenas” o francês, língua que estudou durante vários anos).
Em outro compartimento do móvel, uma pilha de revistas com reportagens inteiras que falam de sua arte. Solicitada a revelar os nomes que melhor escreveram sobre seu trabalho, Goiandira do Couto nega-se com veemência. Com receio de causar melindres e despertar ciúmes, observa: “Todos têm falado bem de minha arte”. A artista prefere citar o quadro de sua preferência: Tinhorão, uma natureza morta.
Goiandira do Couto moveu a jornalista Tânia Mendonça, atualmente à frente do Museu da Imagem e do Som da Fundação Cultura Pedro Ludovico, rumo à produção de peça de vídeo, recentemente exibida na TBC/Cultura. A artista aguarda mais uma produção em que será o centro da cena. Ela diz ter sido procurada há pouco por um diretor brasiliense chamado Max D’Oliveira, que a filmou durante bom número de horas. Porém, a pintora tem despertado interesse também nos meios acadêmicos e editoriais. Acaba de ser informada pela professora Rejane Basseggio Somenzi de que é tema de sua tese na Universidade de Passo Fundo (RS). A artista exibe correspondência de outra gaúcha, a historiadora Hilda Agnes Flores, de Porto Alegre. Ela pede licença a Goiandira do Couto para incluí-la no seu Dicionário de Mulheres (que está sendo produzido) e justifica: “São mulheres que agilizaram de forma significativa sua capacidade de ação, colaborando para melhorar o mundo de seu tempo”. (Antônio Lisboa Morais)
A alegria do reconhecimento
No casarão de Goiandira do Couto não existe espaço para reclamações. Seu nome e sua arte têm obtido considerável reconhecimento, aqui e alhures. Um dos objetos mais apreciados pela artista é a vitrine, no meio do primeiro salão, com várias medalhas, troféus e salvas (espécie de pequena bandeja, redonda, com dizeres). Entre as honrarias, estão a Medalha Ana Néry, concedida pelo governo de São Paulo; a Medalha da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e o Troféu Jaburu, concedido pelo Conselho Estadual de Cultura. Nada se compara, porém, à satisfação da pintora quando apresenta a Medalha Tiradentes (recebida em 21 de abril de 1979), a mais alta patente da Polícia Militar de Goiás. A distinção não é sem razão. Goiandira do Couto fundou escola (em 1936) e lecionou gratuitamente, por vários anos, na cidade de Goiás, para soldados da PM.
No corredor, próximo à cozinha, cobrem boa parte das paredes vários diplomas concedidos pelas mais diversas instituições a Goiandira do Couto. Nesse tour caseiro, nada empolga mais a artista que as lembranças que saltitam da velha cômoda, repleta de álbuns de fotografias. Políticos — de Maguito Vilela a Fernando Henrique —, embaixadores e artistas desfilam sob os olhos extasiados da pintora. Jorge Amado e sua Zélia Gattai, e Orlando Silva, “o cantor das multidões”, são alguns dos personagens notáveis que Goiandira do Couto exibe com prazer, em poses ao seu lado.
Entre Amigos — Mas um quê de emoção bate forte nas rememórias da família — são 12 irmãos, dos quais oito vivos. No primeiro carro que chegou a Catalão, em 1917 (um calhambeque), lá está a menina Goiandira do Couto (com dois anos), no colo do pai, sob o olhar grave da mãe. Em outubro de 1918, em passeio pelo Jardim da Luz, em São Paulo, foi colhido um flagrante dos pimpolhos. Indignado, o pai escreve, no verso da foto: “Estes retratos saíram péssimos, porque os meninos não quiseram se comportar bem. Veja com que cara ficaram o Goyás e a Goiandira”.
Bastante familiar era também o relacionamento de Goiandira do Couto com a botânica e historiadora Amália Hermano. Foram colegas na Escola Normal Oficial (em Vila Boa) e aparecem, sorridentes, numa das fotos. Amaury Menezes, cujo Dicionário de Artes Plásticas, Goiandira do Couto ainda não viu e aguarda com ansiedade, aparece (entre Goiandira e a esposa Canary), como padrinhos de casamento do pesquisador Elder Camargo de Passos.
Em meio a relíquias históricas de Goiandira do Couto, está a cópia de documento, repassado por ela ao governo do Estado. Assinado por João Gomes Machado, em 5 de dezembro de 1844, o documento assinala: “Título de terras em que está situado o edificado Lyceu, pertencente ao mesmo edifício, que foi a herança de Dr. Corumbá, que instituiu mais essa herança à nação, aplicando o produto de seus bens à instrução pública da Província de Goiás”. No casarão de Goiandira do Couto a história faz um silêncio eloqüente, não apenas nas espessas paredes e nos velhos janelões. (Antônio Lisboa Morais)
Uma poesia de Goiandira do Couto |
Quando bem cedinho despertei Amém. |
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